domingo, 15 de abril de 2012

Sozinho em Casa-Casimiro Garcia


Estendo calças no estendal
Estrelo ovos na frigideira
Ouço piar um pardal
Trago lenha prá lareira.
 
Ponho roupa no tambor
Na máquina para lavar
Pula e range com rancor
Fica a cozinha  num mar.
 
Vejo velhota a cavar
Um puto preto a correr
Cão da vizinha a ladrar
Mulher na escada a varrer.
 
Gato a arranhar o sofá
Bata ao lume a cozer
O telefone a tocar
E não querer atender.
 
Tocam campainha de porta
Batem sola de sapato
Canto baladas e opera
Mais valia estar calado.
 
O condómino narigudo
Que detesta o meu cantar
Põe o rádio alto agudo
Com música pimba a tocar.
 
Pinto quadros à janela
Vejo mulher a fumar
Água a ferver na panela
Para meus pés escaldar.
 
Vejo passar duas velhas
Me fitam dizem olá !?..
Finjo, não olho para elas
Porque pregam o Jeová.
 
Ouço picada no vidro
À janela eu fui espreitar
Vi um passarinho ferido
Combalido a amargar.
 
Cuidei dele com cautela
Depressa recuperou
Esgueirou-se à janela
Bateu asas  e voou! …
 
Dou um safanão no gato
Me massacra o seu miar
Lanço-lhe no prato um petisco
Para o fazer calar.
 
É felino, feio e malandráço
Cinzento e rafeiroso
Dá por nome de Picasso
É gordo e pouco jeitoso.
 
Come bife de peru
Lambe-se e diz miau miaú
Pra completar o menu
Bebe a água do bacalhau.
 
No quintal do meu vizinho
Um bancário reformado
No canteiro eu busco erva
Para o meu gato engasgado.
 
Favas couves e nabiças
A velha está a cavar
Um preto pegando a picha
Para no faval mijar.
 
Ligo a televisão, sou trouxa
Passo de, canal em canal
Vejo a cara do Goucha
É mesmo coisa de azar! …
 
É mesmo de gente louca
Estendem lençol no estendal
Tapam-me a janela toda
E não posso ver o mar.
 
Tenho vontade de rasgar
O lençol dependurado
Par as minhas mãos não sujar
Deixo-o estar embandeirado.
 
O Pamplinas faz-me exultar
Cantinflas me divertir
O Charlot me faz chorar
Mister Beean mijar a rir! …
 
Faço pasteis e panquecas
Moelas e caracóis
Faço do bacalhau punhêtas
Rabanadas e rissóis.
 
Alface faz bem as nervos
Alho à hipertensão
Cenoura faz bem aos vesgo
Pau de Cabinda à tesão.
 
A cama do narigudo
Eu nunca a ouvi ranger
A mulher teve bebé
Duvido ser filha dele.
 
Não como espetada grelhada
Pisa, lasanha ou fritos
Carne de vaca guisada
Dobrada com grão de bico.
 
Como salada de agrião
Faz muito bem a quem canta
Bebo chá de hipericão
Para afinar a garganta.
 
Os meus amigos cantores
Uns cantam em FA, outros em DO
São como os músicos de bandas
Não são de uma banda só.
 
Quando me cruzo na escada
Com um vizinho a passar
Mas que grande estopada
Ter de os cumprimentar.
 
Não tem rampa para manco
Nem elevador para subir
Não tem mesa nem tem banco
Nem escarrador para cuspir.
 
O meu vizinho pencudo
Que arruma mal o seu popó
Respinga finge ser surdo
Ou tem tara  ou é tótó.
 
A minha rua das rosas
Teve-as talvez no passado
Com construções tão manhosas
Deviam de ter murchado.
 
O Romeno armou tenda
No  pátio para acampar
Deita-se depois da merenda
Que até guincha a ressonar.
 
 Minha vizinha de frente
Vem para a varanda fumar
Fecha a janela de repente
Quando me ponho a cantar.
 
Vou terminar esta prosa
Limpar a trampa do gato
Escovar-lhe o pelo e a choça
E cantar baixinho um fado.

CASIMIRO GARCIA